Mais de 30% dos portugueses permitiria que o Governo monitorizasse a sua atividade nas redes sociais por questões de segurança
Segundo as conclusões do último estudo “Social credits and Security: embracing the world of ratings” da Kaspersky, que avaliou a perceção das pessoas sobre sistemas de hierarquização – “crédito social” –, os utilizadores estão dispostos a partilhar os seus dados pessoais e concordam que o Governo supervisione a sua atividade nas redes sociais por razões de segurança.
Assim o afirmaram 31% dos portugueses que foram inquiridos pela Kaspersky e 51% dos utilizadores, a nível global.
Ratings sociais
O primeiro episódio da terceira temporada da série Black Mirror – Nosedive – conta a história de Lacie, uma rapariga cujo objetivo de vida é alcançar a pontuação de 4.5, o “número mágico” que lhe permitirá aceder a um conjunto de regalias para comprar um apartamento de luxo. O enredo trata-se de ficção, mas não está tão longe assim da realidade. Na China, por exemplo, está já em desenvolvimento um sistema de “crédito social”, construído a partir dos dados pessoais que os cidadãos disponibilizam às aplicações móveis e que poderá determinar o acesso ao emprego ou aos melhores lugares de um comboio. Nestes contextos, os sistemas de qualificação social medem o potencial de uma pessoa com base nas suas ações e no seu círculo de amigos, também online.
A crescente popularidade de plataformas como redes sociais e serviços online tem provocado um aumento dos sistemas de pontuação social (ratings sociais), algoritmos automatizados baseados no comportamento dos utilizadores e na sua influência na Internet. Inicialmente, estes algoritmos de avaliação foram introduzidos por instituições financeiras e de comércio eletrónico. Hoje em dia, são sistemas que se aplicam a muitas outras esferas e sectores: governos e organizações podem ser capazes de avaliar quem tem direito a uma ampla gama de serviços com base nestas pontuações.
Recentemente, com o surto de Covid-19, também se assistiu à implementação de sistemas automatizados para controlar o movimento das pessoas, a sua capacidade para comprar bens e aceder a serviços sociais. A pergunta que se coloca é se os cidadãos estão realmente preparados para tudo isto. De acordo com o relatório da Kaspersky, apenas 19% dos portugueses que participaram nesta investigação tinham ouvido falar em sistemas de qualificação social, uma percentagem bastante inferior à média mundial de 46%.
Por outro lado, embora os ratings sociais já estejam a ser utilizados e sejam cada vez mais conhecidos, não existe ainda consenso acerca do seu funcionamento e eficácia. Prova disso, mais de um terço dos consumidores portugueses (36%) reconheceu ter problemas em compreender como funciona um sistema de pontuação social. Desconhecem, por exemplo, como é calculada uma pontuação e como pode ser consultada, além de como será corrigida caso se verifiquem imprecisões. Além disso, uma vez que estes sistemas são baseados em aprendizagem automática (machine learning), torna-se mais difícil saber que escolhas fazem e se são confiáveis, especialmente ao nível da segurança.
Perigos
A opinião dos especialistas da Kaspersky é que os sistemas de hierarquização social podem ser vulneráveis à manipulação artificial (imagine-se uma situação em que era possível diminuir ou aumentar a pontuação de uma pessoa para certos e determinados objetivos). Como qualquer outro sistema informático, também estão sujeitos a diferentes ataques, seja devido à sua implementação técnica (programação) ou à sua mecânica de funcionamento. Por exemplo, deve-se ponderar um cenário no qual surge uma nova espécie de mercado negro, onde as classificações dos utilizadores podem ser convertidas em dinheiro real e vice-versa.
Contudo, tudo isto não impede que entidades continuem a recolher dados dos utilizadores, sobretudo quando as pessoas parecem estar dispostas a permiti-lo. O estudo da Kaspersky demonstra que mais de metade dos inquiridos portugueses partilharia informação privada sensível para aceder a oportunidades de emprego (52%), melhores tarifários e descontos (36%) ou serviços especiais (35%). Os utilizadores portugueses mostraram-se também disponíveis para revelar dados dos perfis das suas redes sociais para vários aspetos da vida quotidiana.
Importância da segurança
O inquérito da Kaspersky também concluiu que as questões de segurança são importantes para os consumidores. Três em cada 10 portugueses (31%) concordaria que o Governo monitorizasse a sua atividade nas redes sociais se isso contribuísse para manter os cidadãos mais seguros.
“Os governos e as organizações atravessam um rápido processo de digitalização, que lhes permitirá tirar partido da tecnologia e dos dados dos consumidores de novas maneiras. Desde logo, para melhorarem o serviço que prestam, personalizando a experiência do utilizador e facilitando-lhe a vida. Contudo, não é ainda claro quanta informação pessoal pode ser solicitada ou – mais importante ainda – como será manipulada. Estas questões são especialmente importantes numa situação de confinamento global, em que as pessoas não têm outra opção senão confiar nos serviços online”, comenta Marco Preuss, diretor da Equipa de Investigação e Análise Mundial da Kaspersky na Europa.
Já Genia Kostka, professora de política chinesa na Universidade Livre de Berlin, assinala que “antes, os organismos reguladores e os responsáveis pela elaboração de políticas, na maioria dos países, não seguiam o mesmo ritmo dos sistemas de qualificação social que se estavam a tornar cada vez mais populares. Atualmente, ainda que estes sistemas estejam cada vez mais integrados no dia-a-dia, é fundamental avaliar os riscos que representam, como as violações de privacidade, as discriminações e os prejuízos. A sociedade precisa de discutir, de forma honesta e transparente, se está disposta (e como) a utilizar estas tecnologias, quem pode usá-las e para que fins”.