Os tempos de crise que se vivem pouco têm que ver com o rescaldo da crise financeira global de 2008-2009, caracterizado por algum nível de previsibilidade. O denominador comum é que ambas as crises trouxeram mudanças nos hábitos de consumo a nível global.
O artigo assinado por Scott Mckenzie, Global Intelligence Leader da Nielsen, destaca, precisamente, a tendência de se fazer comparações entre a crise atual e os períodos de recessão do passado, alertando para os perigos de se fazer uma análise demasiado simplista. “Os ajustes às necessidades do consumidor precisam de ser feitos mais rápido e firmemente do que alguma vez considerámos”, sustenta.
De acordo com o especialista, durante a crise de 2008, milhares de pessoas não morriam todas as semanas, milhões não ficavam instantaneamente sem trabalho e estavam confinados às suas casas à espera de uma cura. Também existem considerações de outra índole, como o facto de, hoje, os governos estenderem as ajudas financeiras aos pequenos negócios e trabalhadores, enquanto que na crise de 2008 foram direcionadas para as grandes empresas e para a banca.
Mudanças no ato de compra
No entender de Scott Mckenzie, poderemos esperar – aliás, estamos já a assistir – mudanças no modo como as pessoas fazem as suas compras. “Naturalmente que irão gravitar para as ofertas de menor valor, numa altura mais difícil em termos económicos. Mas também estão a gravitar em torno das marcas que conhecem e nas quais confiam”, nota. “Assegurar a disponibilidade na prateleira e o posicionamento de preço são aspetos críticos. Dever-se-á esperar que estes dois elementos necessitem de uma constante otimização”.
No mundo Covid-19, o “como” e o “onde” as pessoas compram também está a mudar. Com longas filas para entrar nas lojas, à medida que o distanciamento social é reforçado, os consumidores estão a visitar menos pontos de venda e a tentar comprar tudo o que necessitam de uma só vez. “Pelo menos por agora, o preço é um fator a considerar menos do que poder cobrir todas as necessidades básicas”.
Esta mudança de hábitos irá catalisar alterações nas prateleiras físicas e virtuais, à medida que os retalhistas e os fabricantes reconsideram a gama e o sortido oferecidos. Marcas e retalhistas também começam a pensar em promoções, que não foram tão agressivamente utilizadas, nos últimos meses, em alguns mercados. “As promoções encorajam as compras em volume e, nestes tempos de desincentivo às compras de abastecimento, não existe um alinhamento de ambas. Na recessão de 2008/2009, os retalhistas encorajaram ativamente os gastos via promoções”, defende o responsável da Nielsen.
Online como canal emergente
De igual modo, os consumidores aderem às compras online em níveis recorde, o que levará os retalhistas a ter de aplicar as promoções de um modo diferente, consoante a categoria e os desafios que enfrentam na cadeia de abastecimento.
Os operadores de “food service” também não fizeram parte da equação na crise anterior. Os restaurantes e bares mantiveram-se abertos, as escolas e os locais de trabalho não foram encerrados, ao contrário de hoje, o que tem um elevado impacto no consumo dentro do lar. “E se olharmos para os custos comparativos, os dos combustíveis atingiram máximos em 2008/2009, em muitos lugares do mundo. Hoje, vemos preços mais baixos nos postos de abastecimento, ironicamente, numa altura em que poucos estão a utilizar os seus veículos para algo mais que uma rápida ida ao supermercado. A inflação alimentar também era elevada em muitos mercados, em 2008/2009, algo que não esperamos que agora aconteça, já que muitos retalhistas tentarão manter o tráfego nas lojas no que antecipam vir a ser um ambiente económico em degradação”, detalha Scott Mckenzie.
Medo condiciona comportamentos
Existem ainda outros fatores hoje em jogo que necessitam ser incorporados, como o encerramento das fronteiras, a incapacidade dos trabalhadores agrícolas levarem a cabo muitas das colheitas de primavera, as moratórias nos créditos, etc. “O denominador comum fundamental é que os consumidores são pessoas, pessoas com receios concretos e emoções reais, que agem com base nos seus instintos”.
Existe um perigo real de que a Covid-19 condicione os negócios a uma atitude de expectativa, de esperar até que se assemelhe regressar a uma certa normalidade. “Os consumidores, por seu turno, não estão a esperar, estão a agir e a evoluir em tempo real. Os negócios necessitam de se recalibrar. Os consumidores terão tolerâncias distintas às mudanças nos preços, exigências diferentes e expectativas mudadas quanto às campanhas promocionais. Devemos esperar que essas mudanças sejam mais rápidas e mais frequentes do que anteriormente”, conclui.