No rescaldo da compra da Whole Foods pela Amazon, são várias as questões que se levantam sobre o impacto que este negócio poderá ter a nível global e, de um modo particular, em Portugal. O negócio faz do mercado de Fast Moving Consumer Goods (FMCG) uma cobaia para a Amazon? Será possível conquistar este mercado sem uma infraestrutura “física”? Alguém se juntará à Whole Foods na Europa e na Ásia? Como vão reagir os grandes operadores de retalho físico? E que resposta poderão dar os nossos retalhistas para uma eventual aposta da Amazon em Portugal? Para responder a todas estas questões, a Grande Consumo desafiou Armando Mateus, Chief Experience Officer (CXO) da Touchpoint Consulting, e Pedro Pimentel, diretor geral da Centromarca, a analisar o movimento Amazon/Whole Foods. Um dos muitos exemplos da voracidade da gigante norte-americana do comércio eletrónico, que ameaça “engolir” até mesmo os titãs de sectores até aqui considerados intocáveis, como o retalho físico de base alimentar.
Tudo isto, e muito mais, em apenas 23 anos. Corria o ano de 1994 quando aquele que é hoje, segundo a Forbes, o homem mais rico do mundo fundou a Amazon. Nome escolhido por Jeff Bezos porque a sua composição permitia aparecer no topo dos pesquisadores alfabéticos. Tão pouco os livros, com que a Amazon iniciou a sua atividade, foram escolhidos por alguma devoção especial para com a literatura. A verdade é que eram dos poucos produtos que então contavam com uma numeração standard internacional, o chamado código ISBN, o que possibilitava a sua indexação e catalogação digital de uma forma mais rápida e eficaz.
Desde então, e após a sua cotação em bolsa, a 23 de maio de 1997, as ações da Amazonvalorizaram mais de 50.000%. Após o anúncio da maior compra da sua história, precisamente a da Whole Foods, por 13.400 milhões de dólares, o seu valor de mercado cresceu 3,6%.
Esta operação mostra a obsessão da Amazon pela disrupção. Uma obsessão que tem custado muito a vários retalhistas físicos. Pesos pesados como a Circuit City, Borders e Radioshack, históricos do retalho norte-americano, acabaram por decretar falência. Quem ainda permanece em jogo sente dificuldades em encontrar um antídoto para a Amazon e uma fórmula para prevalecer num patamar de eficiência que lhes é difícil de igualar.
Até agora, boa parte dos retalhistas acreditavam estar protegidos da Amazon, assumindo que poderiam ampliar as suas operações digitais a um ritmo superior ao com que a Amazon aumentaria as suas lojas físicas. A aquisição da Whole Foods vem permitir-lhe, de uma assentada, ganhar cerca de 460 lojas nos Estados Unidos da América, Canadá e Reino Unido, mas, sobretudo, assegurar o futuro. “Não era possível, a longo prazo, sustentar crescimento estando apenas baseado num canal. Há um conjunto de necessidades dos consumidores que não estavam a ter resposta em termos físicos. Por alguma razão, já havia e continuam a haver testes de ‘click and collect’, de deixar o produto em cacifos em estações de metro, testes com gasolineiras, etc. Este é apenas mais um passo”, analisa Armando Mateus, CXO da Touchpoint Consulting.
Não obstante, uma coisa é falar-se de “gadgets” e outra, completamente distinta, é falar-se em grande consumo. “Aqui, a questão que se coloca é porque é que o online não descola em FMCG? Primeiro, porque há uma densidade física que não o deixa descolar. Por outro lado, porque há uma parte dos produtos, que são os frescos e os perecíveis, onde é difícil o online dar o serviço adequado, o que leva o ‘shopper’ a optar por ir a um supermercado. Estando na loja, porque razão não compra tudo o que tem para comprar em vez de fazer uma encomenda? Para uma empresa como a Amazon, este negócio é um reconhecimento de que, a este nível, o online isolado não tem força e peso suficientes. Desta forma, a Amazon potencia mutuamente o online e o offline”, acrescenta Pedro Pimentel, diretor geral da Centromarca.
Uma nova era
Estamos, de facto, a testemunhar o nascimento de uma era que que as divisões entre retalho físico e digital fazem cada vez menos sentido. Mas nos FMCG, a quota de mercado das compras digitais ainda é marginal. É difícil trabalhar digitalmente produtos que são perecíveis, pelos desafios que colocam no “sourcing”, na stockagem e em termos da própria escolha do consumidor. Numa altura em que se intensifica a abertura de lojas físicas e a renovação dos mercados tradicionais, torna-se difícil perceber de que modo o online pode acrescentar valor.
Nos próximos meses, ir-se-á, provavelmente, assistir a um alinhamento de conceitos onde a grande incógnita é saber o que acontecerá à insígnia Whole Foods. “A Whole Foods não é apenas uma cadeia de distribuição. Se quisermos fazer um paralelismo com Portugal, se calhar, o mais parecido é o El Corte Inglés. Um supermercado que, erradamente, muitas vezes as pessoas consideram ser caro. A verdade é que o que encarece a fatura são os produtos que lá compramos e que não encontramos em mais nenhum outro lugar. A Whole Foods é, claramente, uma cadeia onde se conjuga uma qualidade com um serviço distintivos. Não é por acaso que a Amazon compra esta cadeia em particular e não a Kroger ou outra mais de base, onde poderia fazer o negócio da massificação. Isto também prova que o que a Amazon pretende é ocupar um espaço que é distintivo”, continua Pedro Pimentel.
Este negócio vai claramente marcar uma viragem. Primeiro,porque assinala o cruzamento de dois caminhos que até aqui corriam paralelos, mas separados. O que significa que vai obrigar quem está no lado físico a pensar no digital e vice-versa. Ao fazer este cruzamento, indica a entrada numa nova fase em que o consumidor é incentivado pelas próprias cadeias físicas a fazer as compras online, com a promessa que se consegue, pela via digital, prestar um serviço semelhante ao prestado na loja física. “Mas tem de se alargar o cabaz dos produtos comprados online”, ressalva Armando Mateus. “Não estamos a falar dos produtos tradicionalmente vendidos pela Amazon, em que o preço médio de cada unidade que faz parte do cabaz são 15 ou 20 euros. Esse preço médio vai reduzir muito e com custos de entrega completamente diferentes. Este vai ser um processo de aprendizagem para a Amazon, com muita tentativa e erro, algo com que a empresa lida muito bem. Se estivéssemos a falar de um operador de retalho físico, em atividade há 50 anos, a comprar um retalhista online, o processo de aprendizagem era mais difícil. A Amazon tem uma grande característica, que é a sua capacidade em ser empreendedora. Os seus centros logísticos, por exemplo, foram autênticas pedradas no charco”.
Inovação com ADN
A inovação faz parte do ADN da Amazon, assim como a capacidade para escutar quem sabe mais, neste caso a Whole Foods, ativa no retalho alimentar físico há 50 anos, incorporando depois esses ensinamentos no seu negócio com uma interpretação diferente. Com este movimento estratégico, a Amazon adquire uma cadeia de frio de nível nacional, um excelente conhecimento de gestão de frescos, uma cadeia de fornecimento global e uma credibilidade forte em produtos de marca própria. Assim, a gigante do e-commerce continua comprometida com o sector alimentar, depois de em dezembro do ano passado ter começado a testar, na sua sede, em Seattle, um conceito de loja física sem caixas.
E ficará por aqui? Os analistas de mercado esperam uma nova fase de compras de ativos de retalho, tanto no mercado europeu como no norte-americano. Caso a Amazon se queira expandir no retalho físico europeu, as cadeias britânicas Morrisons e Sainsbury’s e o francês Carrefour poderiam ser negócios interessantes, na opinião de Bruno Monteyne, analista do banco de investimento Bernstein. “Claramente, o modelo do Carrefour é o que mais se aproxima do que a Amazon gostaria”, concorda Pedro Pimentel. “Mas, no espaço europeu, não temos nenhum operador competitivo para a Amazon poder fazer um negócio semelhante”, ressalva. “Para a Amazon, o Carrefour apresentaria sempre a barreira de ser uma cadeia francesa. Em termos de negócio, é muito mais complexo do que meramente a compra de ativos. Estamos a falar de formas de trabalhar distintas e de um patriotismo muito elevado por parte dos franceses que dificultaria toda a operação”, acrescenta. “São dois modelos de retalho que não se tocam: o anglo-saxónico e o francófono”, reforça Armando Mateus. “Mas, mais do que isso, não há interesse por parte da Amazon em comprar um mega operador transnacional, porque a complexidade que, nesta fase, traria por arrasto não lhe é desejável”.
De facto, a Amazon prefere testar pilotos e implementar uma estratégia país a país. No entender de Pedro Pimentel, seria mais fácil pensar numa entrada em França através da Casino ou na Alemanha via Kaufland, operadores que estão mais limitados ao seu país de origem. Na Alemanha, a Amazon até já trabalha com a Kaufland no Amazon Fresh e em Espanha com a DIA. “A estratégia da Amazon na Europa será sempre muito cirúrgica, definida mercado a mercado e, mesmo dentro dos próprios países, variável de cidade para cidade. É isso que estão a fazer com o Amazon Fresh, que só agora chegou a Hamburgo, depois de Berlim e Munique, na Alemanha, e em Inglaterra apenas está disponível em Londres”.
De facto, o grande “segredo” da Amazon é a sua capacidade, em termos comunicacionais, de jogar com as expectativas, o que lhe dá uma grande dimensão de negócio. Apesar do seu elevado valor bolsista, a Amazon é muito pequena, em termos de vendas, ao lado de uma Walmart, por exemplo, e até 2016 perdeu dinheiro de forma consciente. Mas isso não quer dizer que não se deva olhar para este movimento com atenção. “Mais do que tudo, importa ter bem ciente de que se abriu um novo caminho, não futuro, mas presente, e que quer os retalhistas quer quem com eles trabalha tem de se preparar para o embate. Esteja em que mercado estiver. Até por uma questão de proximidade, deve-se olhar para o mercado espanhol que a Amazon já começou a solidificar”, alerta Pedro Pimentel.
Portugal
Em Portugal, os operadores físicos que acumulam o digital estão, hoje em dia, à partida, em vantagem sobre os “pure players”, Amazon incluída. “Falando em produtos de grande consumo, para o consumidor português, o selo de garantia de um Continente é superior ao da Amazon, por muito que tenha esta aura de quase irreversibilidade. Pelos anos que leva no mercado, o Continente sabe os gostos, as preferências e as necessidades do consumidor português e tem uma boa capacidade de resposta”, destaca o diretor geral da Centromarca.
Até porque o online não é a panaceia para todas as questões e, no caso dos frescos, há todo um processo de “sourcing” e “procurement” a respeitar. No grande consumo, o cabaz é feito com muitos produtos de baixo valor, com um custo de entrega proporcionalmente elevado, pelo que é necessário ser-se muito eficiente para se poder falar de rentabilidade. Contudo, existe também o custo de não estar no online. Assim como, para a Amazon, o custo de não estar no físico.
Neste sentido, como é que um operador como a Jerónimo Martins pode continuar alheado deste movimento? “Porque todo o seu modelo de negócio se baseia na operação de loja”, responde Armando Mateus. “O consumidor do Pingo Doce só não tem online porque não lhe foi criada essa necessidade. Não nos podemos esquecer que esta foi a primeira cadeia de retalho em Portugal a ter o online. Mas optou por fechar. Não acredito que a Jerónimo Martins não esteja a pensar no assunto, mas não sente essa necessidade. O eixo continua a ser o de expansão”.
Um dos motivos porque o online ainda não disparou no grande consumo, e particularmente em Portugal, é precisamente esta falta de necessidade por parte do consumidor. “O retalho português passou os últimos anos, sem o saber, a prevenir e a bloquear a expansão do online. O eixo de desenvolvimento do retalho tem sido a proximidade. Porque é que o consumidor de uma grande cidade precisa de ter proximidade através do online quando já a tem via supermercado do bairro? O movimento que o online em FMCG deverá fazer será proporcionar o acesso a mais, a horas diferentes e de forma personalizada. Esse, sim, é o caminho que a digitalização dos processos vai permitir”, acrescenta o consultor.
Com a abertura deste novo caminho, o terreno de batalha moveu-se da entrega para o tempo de entrega. Numa hora, é possível ter as compras em casa. Os consumidores estão menos pacientes e já perceberam que, mesmo no grande consumo, o online proporciona uma alternativa. “Todos os anos, o online conquista uns milhares de fiéis”, nota Pedro Pimentel. “Há os que desistem na primeira compra, porque algo correu mal, e os que se mantêm. Se as cadeias de distribuição tiverem a capacidade de assegurar que essa experiência de compra não corre mal, sem ter que ser perfeita, principalmente nos meios urbanos, o online vai continuar a progredir. Nos meios rurais, há que pensar que não há um supermercado a cada esquina e que muitas pessoas não têm meios de transporte”. Efetivamente, a democratização do consumo através do retalho é feita ainda de uma forma desequilibrada. Em muitos dos países onde o online está mais pujante, como a China, não são as áreas urbanas que estão a ditar essa tendência.
Mas existem aspetos a acautelar, sobretudo ao falarmos de um mercado que, com o online, se torna efetivamente global. “Desde logo, há todo um conjunto de questões fiscais que estão muito longe de estar resolvidas, principalmente quando se fala de operadores globais. Existe também a questão da garantia que é dada aos produtos e da integridade das marcas. Hoje em dia, o correio é o principal meio de disseminação da contrafação. O processo aduaneiro é, na maior parte dos casos, meramente de garantia fiscal. Aliás, um dos problemas com algumas plataformas, designadamente as do Extremo Oriente, é a existência em simultâneo de produtos de marca e de produtos contrafeitos dessa marca. Finalmente, as empresas nacionais até podem olhar para o online como uma oportunidade de colocação do seu produto no mercado sem a estrutura comercial que isso implicaria, mas, no caso das multinacionais, surge a questão de justificação da sua presença em mercados periféricos como o português. A partir do momento em que as suas compras sejam direcionadas para o canal online, e que estas plataformas são globais, onde há uma compra centralizada com condições negociadas algures, porque razão quererão continuar em Portugal? O online não é uma panaceia de nada, é um negócio como outro qualquer. A compra da Whole Foods pela Amazon vem, assim, marcar um território, em que online e offline não são mais áreas estanques. Passa a haver um conceito híbrido, que vem dar uma resposta mais global a um consumidor que continua a ser apenas um. Esteja no computador ou na loja da esquina”, conclui Pedro Pimentel.
Este artigo foi publicado na edição 46 da Grande Consumo.